15/02/09

Capítulo 7 – O compêndio do Espírito

O receptáculo, cilíndrico, de prata e decorado com motivos religiosos, continha várias folhas de pergaminho, escritas numa letra cuidada e regular. Na primeira folha, num título destacado, estava escrito “O Texto da Religião, segundo Abiel”.
Albus e Kailen, sentaram-se em frente ao altar e leram.

O Texto da Religião, segundo Abiel

É sabido que ao ser Humano lhe é atribuído inteligência e sabedoria. Pelo menos a suficiente para poder decidir o caminho que pretende percorrer. Porém, não será também verdade que o caminho de um Homem depende do meio que o rodeia e da história dos seus antepassados? E do seu próprio passado? Ou melhor, das suas vidas anteriores, do seu Karma?

Pois bem. Para além de ser o pároco da Vila do Castelo, sou também considerado historiador. E é baseado na História e na minha percepção espiritual que irei expor neste texto, aquilo que penso ser a base dos diversos caminhos espirituais. Espero fazer entender ao leitor que não importa o trajecto que se percorre, não importa em que se acredita. O que importa é viver e acreditar.

Foi em 1886 que iniciei a minha jornada. Destaquei-me como missionário católico para a Índia para espalhar a Fé Cristã e poder ajudar as outras pessoas. Foi nesta missão pacífica que se cultivaram boas amizades entre mim e os nativos. Eles estavam dispostos a receber a Boa Nova. Porém esta só era procurada para complementar um outro pensamento. Para eles Jesus Cristo era só mais um ser humano que conseguiu evoluir espiritualmente, tal como Nataputa Vardamana, Moisés, The Bal Shem Tov, Siddharta Gautama, Lau Tze, Francisco de Assis e muitos outros.
Devo dizer que a Índia é dividida, em termos de religião, principalmente entre o Budismo e o Hinduísmo. Estas são as religiões que tiveram origem verdadeiramente indiana. O Hinduísmo é das religiões mais antigas, tem 9 milénios de existência e acredita-se ter evoluído através de práticas shamânicas.
O Cristianismo aparece com muitas semelhanças em relação ao Budismo e ao Hinduísmo. Afinal todas elas tiveram um Mestre Supremo. Alguém que os Hindus e os Budistas referem como um ser Iluminado.
Pessoalmente sempre tive um interesse enorme por temas esotéricos, como a migração das almas e principalmente sobre entidades espirituais. Por causa disso decidi na vinda do Oriente, passar pelo Vaticano a fim de conseguir habilitações e capacidade para exercer os poderes do exorcismo. Assim, consegui, depois de algum estudo e prática, obter o poder do exorcismo através do então Papa Pio X.
O Exorcismo é uma antiga e peculiar forma de oração que a Igreja emprega contra o poder de demónios. Jesus partilhou o seu poder libertador com seus discípulos para que estes pudessem continuar a missão de libertação do Homem expulsando as entidades negativas. Também eu procurei obter esse poder.
Porém apenas sacerdotes autorizados podiam efectuar o ritual. O exorcismo, não se trata de uma oração pessoal e é necessário que o poder seja atribuído de forma simbólica através do Papa que é para a religião Católica o ministro directo de Jesus.
Para além do exorcismo, qualquer um poderá realizar outros rituais de libertação, também muito poderosos, como aprendera através dos shamâs tibetanos.
Uns anos depois da minha ida a Roma, quiseram nomear-me para um cargo mais nobre dentro do clero.
Queriam atribuir-me o grau de bispo mas recusei e consegui ser destacado como pároco para a Vila do Castelo, onde longe dos grandes centros urbanos e perto do mundo natural consegui viver em harmonia com a Natureza e continuar a minha evolução espiritual
, entendendo-me a mim mesmo e ao universo mas também ajudando os outros utilizando tudo o que aprendera nas minhas viagens.
Mais tarde conheci Robur e depois a bruxa Betha, com os quais acabei por formar a Irmandade do Carvalho.
Esta é a minha história.

A história de Robur é a de um auto-iniciado, na busca de respostas. Na busca do seu caminho espiritual.
A sua curiosidade surgiu por causa das histórias fantásticas que o seu avô lhe contava. A fantasia despertava no pequeno Robur, sentado a beira da lareira nas noites frias da serra. Era principalmente nessas ocasiões, que a sua mente se movia, divagando pelo mundo criado pelo contador de histórias.
O avô de Robur fora um dia navegador e fizera o transporte de mercadoria para o extremo Oriente. Foi nessas viagens, que conheceu culturas diferentes e indivíduos de personalidades únicas. Aprendera também algumas técnicas e práticas espirituais extremamente interessantes.
Uma das suas maiores aventuras foi quando conheceu pessoalmente sábios Taoístas entre eles o grande mestre de Hung Gar, Wong Fei Hung, do qual foi aluno.
Wong Fei Hung foi um lendário mestre de artes marciais que valorizava os valores culturais da China ao invés de se deixar influenciar fortemente pelas ideias capitalistas e materialistas do ocidente. Assim, com a ajuda dos seus alunos consegui manter a herança cultural e ajudou a manter vivas não só as artes marciais mas também as artes de medicina tradicional chinesa.
Foi com os sábios Taoístas que o avô de Robur, aprendeu o caminho para uma profunda
harmonia com a Natureza. Descobriu a sua profunda filosofia prática da qual surgiram inúmeros ditados populares da antiga China. Estudou o Tao Te Ching, do qual emergem sempre pensamentos enriquecedores, tanto a nível intelectual como espiritual.
O Taoísmo tem tanto de complexo como de simples. Nele procura-se o amor à Natureza e todas as suas interacções de causa-efeito para atingir a harmonia, mesmo as do mundo humano, afinal também estas pertencem ao grande plano que é a Natureza. Existe ocasionalmente o retiro na procura da harmonia, através do refúgio do meio social para viver como eremita e assim procurar a cura, a vitalidade, o bem-estar, a longevidade e a evolução espiritual.
O sábio Taoista não tem ambições, por isso ele nunca pode falhar. Aquele que nunca falha alcança sempre o seu objectivo. Pois conhece-se a si e às suas capacidades. Pois aquele que alcança os seus objectivos é um ser realizado e feliz em si mesmo.
Foram estes conceitos e saberes que passaram para Robur juntamente com as histórias do seu avô.
Mais tarde já um rapazinho veio trabalhar para o meu precedente aqui na Vila do Castelo.
Robur desde cedo manteve um diário onde registou partes da sua vida, não em forma de livro mas em folhas soltas. Algumas perderam-se para sempre, mas a maioria ficaram comigo guardadas num dos volumes mais importantes da minha biblioteca pessoal.
Ao escrever estas linhas faço-o com a pena de não ter Robur entre os vivos, falecera no mês passado, uns dias depois de colocar o livro na serra. Apenas me disse – “A minha parte está feita, Betha está a tratar da dela e peço-te meu amigo que cumpras a tua.” – assim faço, para que a sua vontade, que passou a ser a nossa se cumpra.
Coloco agora, junto com este texto algumas das notas de Robur, enfim, algumas das suas memórias.

“ Sim, era uma vida difícil e pobre, mas sem dúvida feliz!
Quando completei catorze anos, meu pai conseguiu que fosse trabalhar para o pároco da Vila do Castelo e com ele aprendi a ler e a escrever. Lia todos os livros que podia, afortunado fui pois a biblioteca do pároco era extensa!
Em poucos anos tinha lido todos os seus livros, que englobavam os mais diversos assuntos e tinha-me tornado bem mais capaz de analisar o mundo e viver nele.
Claro está, que eu e o pároco, não partilhámos as mesmas ideias e opiniões, e com o passar do tempo foi-se cavando um fosso entre nós. Não penso que oprimir o povo, incutindo-lhe receio de um Deus distante, seja o caminho, também não concordo com templos de pedra. A meu ver a religião é para ser vivida, sentida por cada um e assim sendo o templo está dentro de nós, o corpo físico é o templo, o templo da alma! Mas, o pároco achava estas ideias perigosas. Quando um dia me recusei a confessar, alegando que não achava necessário ser ele a pedir perdão pelos meus pecados a Deus, quando eu podia perfeitamente fazer isso sozinho, acusou-me de blasfemar e deu o meu lugar a outro.”

“Com o pouco dinheiro que consegui juntar, e influenciado pelas histórias que meu avô me contava, decidi partir numa viagem sem destino, em busca de mais conhecimento.
Percorria enormes distâncias, sempre que possível a pé, conhecendo as mais variadas pessoas e os mais maravilhosos locais.
Anos se passaram até por fim decidir voltar à casa de meus pais. Encontrei-os ainda vivos, mais velhos, mas felizes! Fiquei com eles até partirem, morrendo os dois na mesma noite durante o sono. Juntos, como se as suas almas estivessem destinadas a caminhar unidas não só na vida como também na morte.
Na minha busca de conhecimento tinha encontrado fortes indícios de que existe vida para além da morte, e de que cada um de nós vive várias vidas, assim, a sua morte não me trouxe tristeza, apenas a esperança de um reencontro.”

“A Irmandade do Carvalho está formada, somos apenas três, mas juntos conseguiremos, tenho a certeza disso. Os outros dois são o novo pároco da Vila do Castelo e uma bonita bruxa que vive numa casa isolada a caminho da Retorta.”

“É uma pena, estou velho, conheço-me e entendo coisas neste Universo que poucos entendem, sinto como poucos são capazes mas não consegui realizar o meu maior sonho. O sonho de uma Irmandade vasta morrerá comigo.”

“Num último gesto de esperança, redigi o livro da Irmandade, contando o meu sonho e idealizando tarefas a realizar por aqueles que espero um dia se cruzem com o meu livro. Que possam sentir uma vontade de continuar o que eu comecei, e fazer renascer uma Irmandade que espero não acabe com a nossa morte.
Betha e Abiel concordaram com a minha ideia, sei que também eles cumprirão a sua parte e colocaram os seus textos nos locais escolhidos.”

Espero, com todo o meu coração e caso ainda não fosse a vontade do leitor continuar o que nós começámos, que estes escritos de Robur tenham ajudado a decidir-se pela continuidade do nosso sonho.

Betha por outro lado, cresceu no seio da tradição cigana proveniente da região central da Espanha. Foi nómada durante muitos anos já que as viagens do seu clã eram muito frequentes, tendo passado assim a sua infância.
Um dia contei-lhe, para que soubesse, que os primeiros ciganos eram originários da Índia e que teriam começado a entrar na Europa por volta do século XII. Contei-lhe também que os primeiros indícios da presença do seu povo em Portugal datavam da segunda metade do século XV. Os ciganos fazem parte de uma etnia de cultura própria, rica e que por variadas razões se encontram dispersos por todo o mundo.
Como nómadas passam em suas andanças, por diferentes países, legando e enriquecendo a sua cultura.
O grupo Rom é o mais disperso, pois, devido a sua origem extra-Ibérica, é encontrado em todo o mundo, da Europa à Argentina. Os do grupo Calom, o grupo de Betha, encontram-se mais em Espanha particularmente na Andaluzia, mas existe também uma grande concentração de Caloms em Portugal, na África do Norte e no sul da França.
São os chamados ciganos Ibéricos, fazem de tudo um pouco e são caracterizados por serem óptimos ferreiros, caldeireiros, vendedores de jóias e tapetes. Alguns são ciganos circenses, outros praticam a adivinhação mágica e a sabedoria alquímica. Estas tradições, rituais mágicos e a fitoterapia caracterizam ainda hoje a Betha que através delas e utilizando ervas fabrica poções muito eficazes.
Betha assentou, depois de herdar umas moedas de ouro de um tio, comprou a casa onde reside e deixou-se ficar, convivendo com a natureza diariamente, tendo por companheiros animais e plantas. Sei que é procurada por diversas pessoas para lhes curar maleitas físicas, suas e as dos seus animais. A todos diz que sim, pois seu amor é incondicional.
Basta de conversa sobre as nossas vidas. O leitor tem a sua e espero que a saiba viver sabiamente.
Com estas histórias pretendi apenas demonstrar, que os caminhos são vários e que a escolha é feita pelo próprio. Mas tem de ser feita! Se necessário mais do que uma vez.
É necessário rezar, meditar, fortalecer a vontade e dominar a mente compreendendo-a. É necessário estudar, praticar e sentir. Analisar diversos estados de consciência e cartografar os próprios planos de existência, como já foi feito por outros à milénios atrás. Mas esta descoberta tem de ser pessoal, cheia de livre arbítrio, e livre de medo.
Quero ainda dizer que se tens uma religião e se através dela te sentes evoluir a cada dia que passa, então digo que deves segui-la. Peço-te é que entendas que não
é a única e que nem é obrigatório ter uma.
No início as pessoas encontravam-se dispersas pelo mundo, sem contacto, apenas convivendo com os mais próximos.
Desde cedo se impressionaram com os fenómenos naturais, que aos seus olhos pareciam autênticos milagres. Então, sentiram pela primeira vez a energia que se esconde por detrás de cada fenómeno natural, e observando, contemplando, aprenderam por exemplo, a arte do cultivo de plantas. Também observaram que por vezes o seu vizinho tinha mais sorte nas caçadas ou então melhores colheitas, entenderam que se colocassem um pouco de si, do seu amor nas coisas que faziam a sua interacção com a natureza tornava-se mais fácil e mais profícua.
Alguns ficavam horas observando a natureza, tentando ver as energias entender o que se encontra por detrás da cortina e mesmo sem entender por vezes achavam-se conectados a algo maior que eles, a uma energia que não entendiam mas que os fazia pensar e dizer coisas estranhas, que os fazia ter novas ideias novos pensamentos capazes de, quando colocados em prática, ajudar os outros. Sem saberem como viram-se mais capazes do que algum dia imaginaram e todos os restantes, que se tinham concentrado apenas no material, no visível, passaram a admirá-los ou a invejá-los.
O Homem é um ser complexo, capaz de agir e sentir. As emoções sentidas no contacto com a energia do universo, levaram-no a venerar essas energias que não entendia, para uns essa veneração era feita de caminhos que, esperavam, os levaria a entender essas energias. Para outros bastava apenas venerá-las curvando-se perante o desconhecido com medo de retaliações e na esperança de favores.
Ao Homem sempre foi difícil amar o que não vê, então, os diferentes povos foram criando diferentes representações das energias do universo que consideraram divinas. Para uns era a própria natureza, ou então a lua ou o sol que viam cruzar os céus diariamente, para outros os deuses tinham de ser como os Homens, semelhantes fisicamente mas todo-poderosos.
Assim, e durante milénios novas e diferentes maneiras de representar a mesma coisa foram surgindo.
Para uma mesma energia que, interagindo com a alma de cada um, pode ser positiva ou negativa, foram criadas diferentes representações, diferentes religiões.
Infelizmente para a humanidade a verdade foi-se escondendo, deixando os Homens perdidos entre concepções pessoais, regras ou leis que apenas servem para reprimir a alma e deixá-la amarrada a uma sociedade que prevejo cada vez mais negra.
Alguns Homens, como Buda ou Jesus Cristo foram surgindo, tentando modificar o rumo das sociedades em que viviam. Penosamente a alma humana é facilmente corrompida e assim são escondidos das pessoas os verdadeiros ensinamentos dos vários Homens notáveis, que atingiram uma evolução espiritual que o resto de nós nunca chegará a atingir já que a bem da suposta coesão social governos inteiros escondem a informação e o que é pior as próprias religiões, com agendas próprias também o fazem.
E assim, sou obrigado a ler diariamente na missa os mesmos textos, observando os fiéis de alma cada vez mais atrofiada, pensarem em Jesus como uma divindade e não como um grande Homem, um exemplo a seguir na tentativa de também eles atingirem o contacto directo com a energia divina, a capacidade de fazer o que ele fez, de amar como ele amou.
Por tudo isto peço a quem me lê que se tiver essa possibilidade divulgue os verdadeiros textos das mais diversas religiões, que transmita a mensagem de que deve ser cada um a lê-los e a entende-los com a sua própria alma, com o seu próprio ser.
Fazendo parte de uma comunidade religiosa ou não, cada um tem de pensar por si, entender por si, ajustar a si e à sua alma cada ensinamento, cada texto que lê.

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