15/02/09

Capítulo 1 – O encontro

A aldeia estava cada vez mais próxima, pela janela do carro já era possível avistar a serra de São Cornélio, a mais alta da região e assim chamada desde tempos imemoriais em homenagem ao santo com o mesmo nome. Este, terá aparecido a um rapaz que pastoreava as suas ovelhas e com o qual conversou por diversas vezes.
Conta também a lenda que uma imagem do dito santo foi encontrada pelo rapaz numa lapa, no topo da montanha, para a qual se construiu a pequena capela que ainda hoje aí persiste.
- Como é bom voltar a casa. – pensou.
Este, o seu último ano de faculdade, tinha sido o mais difícil. - “É o pior ano da minha vida!” – costumava dizer. Um atípico ano de estágio, cheio de problemas, que só com muita paciência, ponderação e persistência tinha terminado, pode dizer-se, bem.
Agora, terminado o estágio e terminada a faculdade era tempo de voltar ao vale que tão bem conhecia e que considerava parte de si.
Pensativo, continuou a olhar a paisagem que passava rápida pelos seus olhos enquanto o carro avançava na estrada vazia.
- Que foi?
- Nada mãe. Já tinha saudades de tudo isto. É bom estar de volta!
Sua mãe sorriu, voltando a concentrar-se na estrada.
A aldeia estava agora mesmo à sua frente, era bom voltar a olhar as serras que se erguiam em seu redor, respirar o ar puro do campo e sentir-se finalmente em casa.
Assim que saiu do carro correram ao seu encontro os seus três cães, pelos quais sentia um carinho muito especial e que era retribuído em lambidelas e latidos sempre que vinha a casa.
- Vai trocar de roupa e vem jantar.
- Sim mãe. Vou já!
O dia deu o seu lugar a uma típica noite de Verão, quente, sem a mínima brisa e cheia de estrelas. Aproveitando a noite, resolveu passear um pouco.
Saiu de casa e deambulou durante algum tempo pelas ruas desertas, então, decidindo sair da aldeia seguiu em direcção a um pequeno aglomerado de carvalhos situados na base da Serra do Bufo que ladeia a aldeia a Norte. Este pequeno aglomerado de carvalhos fora outrora um bosque, rico em vida, que terminou devastado numa noite muito similar a esta, por um incêndio com mão criminosa. Apesar dos esforços da população para impedir o bosque de arder, no final nada restou a não ser o pequeno aglomerado de carvalhos e muitas lágrimas derramadas.
Ao chegar ao local, escolheu a pedra que lhe pareceu mais confortável e sentou-se ficando assim durante algum tempo contemplando o céu nocturno. Tempos houve em que estar assim, sozinho no escuro, lhe causaria medo e uma vontade incontrolável de voltar rapidamente para a luz. Hoje a noite dava-lhe calma, uma calma que não sentia à muito e da qual já tinha saudades.
Respirando fundo, observou ao seu redor. Os carvalhos apresentavam-se silenciosos, sem o mínimo movimento dos seus ramos, o chão estava coberto de folhas do Outono passado e nele não conseguia observar qualquer vestígio de animais nocturnos. Porém, num carvalho próximo, uma coruja tinha pousado e iniciara o seu canto. Aproveitando o som, constante e ritmado, do canto da coruja, fechou os olhos e deixou-se ficar assim, durante largos minutos, com a respiração cada vez mais calma e ritmada a ouvir o canto que chegava até si. Uma profunda sensação de bem-estar invadiu-o e um sorriso formou-se em seus lábios.
Abriu os olhos, a coruja tinha parado de cantar. Ao seu lado direito, apenas a alguns metros de distância, algo ou alguém revirava as folhas do chão. Colocando-se de pé tentou verificar o que poderia ser, então, surgindo por detrás duma giesta apareceu uma pequena raposa que o fitou com curiosidade por breves momentos, seguindo depois o seu caminho até desaparecer.
Decidindo que era hora de voltar desceu até ao caminho que o levaria a casa. Enquanto caminhava lembrou-se do encontro que tinha marcado para a manhã do dia seguinte. Um amigo de longa data vinha mais uma vez ao Dirão da Rua, uma aldeia situada do outro lado da serra de São Cornélio, e como sempre o encontro estava marcado para o topo da serra junto à capelinha lá situada.
- Vai ser bom voltar a ver-te Kailen. – pensou.

*

O dia amanhecera quente e sem nuvens, Albus foi acordado pela azáfama dos habitantes da aldeia que se dirigiam para os seus campos. Levantou-se, tomou o pequeno-almoço, colocou duas maçãs e o cantil cheio de água na mochila e partiu em direcção ao topo do São Cornélio.
A serra estava a custar a subir mais do que era costume, a poluição da cidade e a falta de tempo para cuidar de si durante o ano de estágio, tinham deixado marcas e agora a serra parecia mais alta do que nunca.
- Ufa!! Não pensei que me fosse tão difícil, estou mesmo de todo! – disse para consigo enquanto subia mais uma rocha.
- Se não me despacho vou atrasar-me, estou a subir à meia hora e a este ritmo ainda demoro, pelo menos, mais 15 minutos até lá acima. Bem, o Kailen vai ter de esperar um pouco! – disse sorrindo.
Era seu costume falar alto enquanto caminhava sozinho, adorava a natureza e por isso falava para ela. Passados mais 5 minutos de penosa subida avistou finalmente a capela. A partir de agora era a descer durante uns bons 100 metros e depois era só subir mais um pouco e estava lá.
Com o ânimo renovado pela descida decidiu fazer a distância que faltava a correr, enquanto saltava de pedra em pedra em direcção à última subida Kailen avistou-o do pequeno posto de vigia da capelinha, desceu rapidamente e correu ao seu encontro.
- Kailen, não desças mais, espera aí por mim.
- Então, estás bom?
- Sim. E tu?
-Também! – disse com um sorriso enorme no rosto suado.
-Parece que a subida te custou a fazer.
- É, a forma física já não é a que era.
- Ainda te resta alguma energia?
- Sempre!
Albus pousou a mochila no chão e com um golpe rápido atacou Kailen no ventre, este deu um passo atrás e sorrindo contra atacou com dois golpes de braços, Albus defendeu o primeiro com a mão esquerda mas foi atingido pelo segundo no peito. Riu alto e pegando na mochila desatou a saltar de pedra em pedra pela montanha abaixo com Kailen no seu encalço.
- Ei! Fugir não vale!
- Quem é que vai a fugir?! São manobras evasivas! – exclamou Albus ao percorrer uma lameira.
Kailen, deu um toque na perna direita de Albus que caiu na erva completamente seca, rolou e levantando-se tentou atacar Kailen, que mais rápido atacou primeiro voltando a tombar Albus na erva. Este deixou-se ficar ofegante, mas rindo divertido. Kailen deitou-se ao seu lado.
- Foi excelente! – disse Kailen.
- Já tinha saudades das nossas lutas!
- É impressão minha ou estás um pouco destreinado?
- Sabes como é, este ano não tive tempo para nada, e o treino físico foi uma das coisas que negligenciei.
- Uma das coisas?!
- Sim, basicamente este ano foi: muitos trabalhos de estágio, preparar aulas, dar aulas e fazer as monografias, o tempo que sobrava era para comer mal e dormir, uma desgraça!
- Estou a ver, passaste-te para segundo plano durante um ano inteiro.
- Sim. Mas agora estou de volta e espero recuperar quer física quer mentalmente. Não me posso deixar ficar, parar é morrer. E tu?
- Bem, eu tive algum tempo livre este ano e depois do trabalho de seminário de estágio que estou a ultimar acabo de vez.
- Óptimo, isso quer dizer que tu, tal como eu, em breve estarás no desemprego.
-Pois é! Bem eu espero que seja só este ano. – disse Kailen rindo.
- Também eu! E como vai a tua evolução pessoal?
- Bem! Estou em harmonia com tudo o que me rodeia, e continuo a combinar busca espiritual, amor pela natureza e exercício físico, acho que estou no bom caminho!
- É, também me parece que sim. Queres uma maçã?
- Pode ser.
Albus e Kailen, conheciam-se à muito, a primeira vez que se encontraram foi numa festa na Quarta-Feira a aldeia de Albus, eram ainda muito pequenos, mesmo assim, os seus interesses eram já idênticos, magia, artes marciais e natureza.
Nesse dia em vez de irem para o baile foram trocar ideias, sonhos, vontades, para um local mais sossegado e longe da multidão. Ainda muito novos encaravam a magia como algo que lhes permitiria contrariar as leis do universo, através da qual conseguiriam tudo o que quisessem. O necessário era arranjar os livros certos onde estaria explicado como falar com espíritos, fadas e duendes, como tornar-se invisível, como viajar para o passado ou mesmo prever o futuro. O amor pela natureza era algo que estava ligado à magia, para eles um verdadeiro mago deveria respeitar tudo o que existe no universo. A paixão pelas artes marciais, bem, essa adveio dos muitos filmes que viam na televisão.
Depois desse dia não mais se viram durante vários anos, Albus estudou numa escola pública e Kailen num seminário até terminar o 9º ano. Por coincidência, e daí talvez não, ao irem para o ensino secundário foram para a mesma escola e colocados na mesma turma. Rapidamente se tornaram amigos, os interesses continuavam os mesmos e tinham já feito progressos quer na magia quer nas artes marciais, nestas, de forma autodidacta tinham aprendido diversos movimentos e golpes e cada vez mais eram da opinião de que já que temos um corpo, o ideal é cuidar dele da melhor forma possível. Na magia a coisa não tinha corrido tão bem, ainda jovens tinham dificuldade em lidar com os aspectos mais filosóficos desta, e os logros que alguns livros mostraram ser só eram factores de descrença e desmotivação. O que ainda os prendia à magia era a sua imagem poética e oculta que os fazia sentir especiais e diferentes dos outros, mesmo que não resultasse era divertido invocar entidades para um círculo mágico ou fazer talismãs que supostamente os ajudariam a conseguir tudo o que queriam. Com o passar dos anos foram percebendo que muitos dos autores que escreviam livros de magia não sabiam nada, ou quase nada sobre o assunto, e que apenas pretendiam fazer dinheiro com os seus livros. Por fim de todos os livros sobre religião ou magia que tinham lido tinham apenas retirado três lições importantes:
1ª – Por mais diferentes que possam parecer, todas as verdadeiras religiões têm objectivos idênticos e todas se dirigem para a evolução espiritual do homem. Por isso não existem religiões melhores nem piores.
2ª – A evolução espiritual é pessoal e cabe a cada um encontrar o seu caminho, que não pode ser trilhado por mais ninguém a não ser pelo próprio. É a fazer e a viver que se aprende.
3ª – O que importa são os sentimentos e a energia, não as formas ou os nomes.
Assim, deixou de ser prioritário conseguir falar com espíritos e fadas, bem como viajar para o passado ou para o futuro, os espíritos são espíritos hoje mas pode estar aqui amanhã, com as mesmas duvidas que nós, as fadas e os gnomos passaram a ser encarados como energia universal, tal como os anjos ou quaisquer outras entidades, e Deus, esse passou a ser a energia do Universo, responsável por tudo o que existe e pelo movimento das coisas. O passado faz parte da nossa alma e é ele que nos define, o futuro ainda não existe e depende de como se vive o presente. E se Deus é a energia que existe em tudo, então está em toda a parte e como o Universo está em movimento o importante é prestar atenção a esse movimento compreendendo os seus sinais que passam a ser sinais de Deus. E se tudo possui energia universal, então todas as coisas estão interligadas e podem interagir entre si.
Depois veio a faculdade, Albus foi para o Porto, Kailen para Coimbra, mais uma vez o contacto foi quebrado, desta vez por pouco tempo, já que com os telemóveis e a Internet as conversas entre si passaram a ser quase diárias, sempre que um dava um passo que julgava ser importante na sua evolução pessoal contava ao outro para que este pudesse daí tirar as lições ou as ideias que mais se enquadravam na sua própria evolução, e foi assim que ano a ano se chegou aos dias de hoje, à serra de São Cornélio e à lameira onde estes dois amigos se encontram deitados saboreando maçãs e bebendo água.
- Então, vamos dar uma volta por aí? – perguntou Albus atirando com o caroço da maçã para longe e bebendo um gole de água.
- Claro! Onde queres ir?
- Ao Monte da Lua.
- Monte da Lua?!
- É o nome de um dos cumes desta serra que fica ali mais abaixo no lado norte.
- Porquê esse nome?
- Sabes, esse cume é o único da serra de São Cornélio que está repleto de carvalhos, e nas noites de Lua Cheia, se estiveres na Quarta-Feira, a Lua nasce quase sempre nesse cume, daí o nome.
- Vamos lá então, se há árvores é um bom local.
Albus começou a correr subindo primeiro e depois descendo em direcção ao Monte da Lua, Kailen seguia-o um pouco mais atrás. Foram descendo saltando de pedra em pedra ou então correndo sobre a vegetação rasteira. Assim que o Monte se encontrava a apenas uns 150 metros de distância Albus apontou para o local e gritou para Kailen:
- Uma corrida até lá!
Dizendo isso desatou a correr cada vez mais rápido serra abaixo, percorreu a distância o mais depressa que pode. Ao chegar parou triunfante tentando recuperar o fôlego, olhou para trás ainda com a respiração rápida e descontrolada, notando para seu espanto, que Kailen tinha desaparecido.

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