
As tarefas essa estavam tão imprecisas na cabeça de Albus como no seu caderno, apenas conseguiu definir claramente aquela que se lhe afigurava como a primeira, a qual Robur indicava, na parte final do livro, designando-a como “O Amor pela Natureza”. Albus transcrevera na íntegra o texto de Robur:
“ A Natureza não é de ninguém, perfeita em si mesma, mutável como todas as coisas, sabe cuidar de si como nenhum Homem sabe. O Homem, na sua arrogância, pensa que só por existir pode e deve controlar tudo à sua volta, ó ser inseguro! Como é que algo tão imperfeito pode querer controlar, mandar na perfeição? Não pode, não deve, o Homem nada pode ensinar à Natureza, deve apenas procurar aprender com ela observando-a com atenção e amor.
O amor é o sentimento mais importante de todos, quem não conhece o amor, as suas vertentes e manifestações, deve procurar conhecê-lo, senti-lo, adaptar a sua alma a ele. Só assim poderás cumprir a primeira tarefa, amando a Natureza, só amando verás o mundo pelos olhos do sábio, pelos olhos de Deus. Não me cabe a mim ensinar-te a amar, o amor não se aprende, sente-se!
Deus, Força Universal, ou qualquer outro nome que lhe desejes chamar, deu a cada Ser as ferramentas para a sua vida, aos animais, às plantas, e também aos Homens.
Entre as aptidões inatas do Homem está a capacidade de sentir, de se emocionar, pois é isso que espero que quem quer que leia estas palavras seja capaz de fazer, emocionar-se ao olhar em redor a partir do local onde este livro foi descoberto. Para tal, será necessário observares tudo o que te rodeia, sentires o local onde te encontras, que todos os teus sentidos estejam alerta, sente como o local toca a tua pele, ouve os sons que chegam até ti, cheira os odores que captas, abre bem os olhos, olha à tua volta, abre o teu coração, a tua mente, e agora:
Com lágrimas no olhar
Para norte te deves virar
Um mundo inteiro à tua porta
O que te convém nem na Retorta
Para a tua busca continuar
Ás Fráguas deves ir e voltar.”
Albus fechou o seu caderno de apontamentos, embrulhou cuidadosamente o livro de Robur no tecido negro e guardou-o num baú de madeira que mantinha no cimo do seu guarda-fatos. Ainda com o pensamento na primeira tarefa, deitou-se acabando por adormecer pouco tempo depois.
*
Na tarde do dia seguinte, Albus subia a serra pelo trilho de pedra que o levava ao Monte da Lua e ao local onde tinham encontrado o livro. Preparava já, durante a subida, a alma para a primeira tarefa, não queria nem podia falhar, sabia-o e a sua alma também, era como se neste momento da sua vida e da sua existência, este achado, este livro, esta tarefa fossem o que de mais importante existia, e assim, nada podia falhar. Tinha a certeza absoluta de que sabia como resolver a tarefa, aliás, a forma de sentir a natureza, descrita no livro não lhe era estranha, era assim que sentia o seu universo e nele os sentimentos também sempre foram a coisa mais importante de todas.
Chegara finalmente ao local onde Kailen descobrira o livro, observou tudo ao seu redor, respirou calma e profundamente por diversas vezes, procurou que todos os seus sentidos estivessem despertos, começou então a sentir-se, a sentir o calor na sua pele, podia ouvir pássaros que chilreando conseguiam que Albus se concentrasse ainda mais, sentia o cheiro do seu suor misturado com o perfume emanado das flores, estava alerta sabia-o pois quando meditava esta era uma das técnicas por si utilizada, o não pensar e ao invés sentir.
Foi então que finalmente se virou para norte, não com lágrimas no olhar mas com uma profunda alegria no coração. Lá ao longe podia ver o cabeço das Fráguas erguendo-se imponente, qual serrania de povos pré romanos e inscrições misteriosas gravadas nas pedras do cabeço. Mais perto podia observar a Retorta, um pequeno aglomerado de casas habitado desde sempre por apenas duas ou três almas. Só que, para Albus, não era a Retorta ou as Fráguas o que de mais importante observava, era sim a pequena casa situada um pouco antes da Retorta e que sempre lhe disseram ser casa abandonada por ter sido casa de bruxas. Na sua cabeça tudo fazia sentido, estava claro como água que seria aquela a casa que a bruxa, da Irmandade do Carvalho teria habitado, era certamente ali que a primeira tarefa o queria levar, seria naquele local que mais um pouco do mistério das outras duas tarefas seria revelado.
Pegou no telemóvel e ligou ao Kailen, que atendeu de respiração ofegante e voz esforçada:
- Estou, Albus! Então tudo bem?
- Sim. Que andas a fazer, pareces cansado!
- Treino físico. Estou a fazer o percurso de descida de uma serra que subi, e vinha aos saltos por aqui a baixo, de pedra em pedra.
- Engraçado, também estou no cimo da serra, no local onde encontraste o livro, ainda não tinha voltado a conversar contigo e por isso faço-o agora. Reli o livro com atenção e foquei-me nas três tarefas, a primeira começa com o achar do livro, penso que para Robur só alguém que amasse a natureza como ele deveria encontrar o livro, penso que por isso o colocou aqui neste cabeço para que só um pastor ou alguém que gostando de passear, de percorrer estas serras, de observar estas paisagens apreciando tudo o que nelas existe pudesse dar com ele. A outra parte da primeira tarefa penso que se refere a como achar o compêndio do corpo escrito pela bruxa, estou virado para norte como é indicado e posso observar as Fráguas e a Retorta, mas também uma velha casa de pedra um pouco antes da Retorta que diziam os anciãos ser casa de bruxas, assim penso estar associada à bruxa da irmandade. O que te parece?
- Tem lógica, pensas que o compêndio do corpo possa estar nessa casa?
- Penso, mas também acho que não bastará irmos à casa, é também necessário deslocarmo-nos às Fráguas, penso que terá a ver com as inscrições que existem por lá.
- Inscrições?
- Sim, as Fráguas são conhecidas por diversos blocos graníticos com inscrições, aparentemente frases, numa língua indecifrável, gravadas nas suas faces. Quem sabe essas inscrições não estão também, relacionadas com a Irmandade?
- Isso é especulação, nada te diz que é assim!
-Pois não, mas não encontro outra razão para a parte do verso em que é dito – “…para a tua busca continuar, às Fráguas deves ir e voltar. “ – porque razão teríamos de ir às Fráguas se o que nos convém nem na Retorta?
- Faz sentido, mas que relação existirá?
- Não sei por isso te digo, temos que ir o quanto antes à casa da bruxa e às Fráguas.
- E quando pensas deslocar-te lá?
- Não sei, mas espero que vás comigo, estamos nisto juntos, por isso peço-te que venhas à Quarta-Feira assim que te for possível.
- Pois mas não me parece que um dia seja suficiente, se realmente se estabelecer uma relação com as inscrições das Fráguas vamos precisar de tempo.
- Tens razão. Que tal se viesses passar uns dias comigo?
- Olha, seria óptimo!
- Então está combinado, quando podes vir?
- No próximo fim-de-semana? Pode ser? Vou na sexta à noite, para sábado fazermos a nossa busca.
- Então fica combinado, sexta cá te espero!
*
Sexta à tarde a impaciência de Albus era palpável, parecera-lhe que a semana nunca mais passava, leu e releu mais que uma vez o livro e as notas do seu caderno de apontamentos, tinha formulado dezenas de hipóteses na sua cabeça para tudo o que estava a acontecer. À medida que a impaciência aumentava o negativismo das suas ideias também, chegando mesmo a pensar que tudo aquilo podia ser uma brincadeira de mau gosto de alguém sem nada para fazer e que resolvera inventar o livro e as tarefas para se divertir à custa dos outros, fazendo-os percorrer longas distâncias em busca de meras fantasias.
É claro que quando Kailen chegou, o negativismo de Albus dissipou-se completamente. Kailen, pessoa bem mais optimista que Albus rapidamente se apressou a dizer que para ele o livro era real e as tarefas também, não cabia na cabeça de ninguém, inventar uma coisa destas e desse no que desse esta busca valeria sempre a pena, chegando mesmo a dizer a Albus:
- Para mim não interessa o destino, apenas me limito a apreciar a viagem até ele. A viagem é o mais importante e podes crer que estou pronto para esta. Albus rira com a afirmação do amigo, este sabia sempre como devolver-lhe o entusiasmo e mais uma vez conseguira.
Nessa noite deitaram-se cedo pois como afirmara Kailen – “ É para acordar com as galinhas!” – e claro que assim foi, às sete da manhã do dia seguinte encontravam-se já fora da aldeia e a caminho da casa da bruxa.
- Ainda bem que pudeste vir Kailen.
- Tinha de vir, jamais faltaria a uma aventura destas.
- Já reparaste que estamos a viver um dos nossos sonhos de infância?
- Sim já pensei nisso, quando encontrei o vaso, algo dentro de mim afirmava que este continha algo especial.
- E continha. O livro por si só já é um achado magnífico, mas as palavras nele contidas, as tarefas a realizar, essas são ainda mais importantes e interessantes.
- Sem dúvida, naquele dia fiquei com pena de ter que regressar à Miuzela, queria era reler o livro e começar logo com as tarefas.
- Cá estamos, a caminho de realizar a primeira!
- Sabes Albus, penso que esse tal Robur queria que quem realizasse as tarefas amasse muito a natureza, penso que é por essa razão que temos de ir as Fráguas, para podermos apreciar estas belas paisagens, conviver com animais e plantas, apreciar como tudo isto é libertador e belo.
- Concordo, mas não penso que seja só por essa razão, não me parece mera coincidência a referência específica às Fráguas, não te esqueças que sempre foram local de mistério pelas inscrições lá existentes.
- Sim realmente tem lógica, e a casa da bruxa, pensas que será fácil entrar nela?
- Não sei, já à muito não percorria estes caminhos e nunca parei para investigar essa casa, vista de longe parece uma casa velha como outra qualquer. Se bem me lembro o telhado está em mau estado mas tem porta.
- Se a porta estiver fechada talvez dê para entrar pelo telhado!
Albus sorriu com a afirmação do amigo.
Da Quarta-feira à Retorta não era mais que uma hora de caminho por entre serras graníticas povoadas de espécies como o carvalho, o pinheiro, o sobreiro e também giestas e fetos. Uma pequena Ribeira, nascida na serra da Retorta, cirandava ao longo de todo o percurso rodeada de freixos e salgueiros povoados de pássaros e desaguando depois na ribeira da Quarta-Feira.
Kailen e Albus adoravam tudo isto, era óptimo poder caminhar assim por caminhos de terra batida rodeados de beleza natural, cada passo era aproveitado ao máximo, uma calma e uma alegria enchiam as suas almas e os seus corações, era como se outro mundo para além do mundo existisse, um mundo belo, tranquilo, natural, equilibrado.
De repente Albus avistou uma raposa de rabo felpudo e avermelhado, Kailen apressou-se a gritar – Ei! Pchiit! Ó raposa, ei! – esta como que surpreendida parou por instantes e fixou os seu olhos nos dois amigos, um momento passou em que ninguém se mexeu ou falou, depois a raposa baixou ligeiramente a cabeça como que fazendo um aceno e seguiu o seu caminho. Albus e Kailen entre olharam-se surpreendidos.
- Viste! Viste! – disse Albus admirado.
- Sim, parece que nos acenou!
- Estranho, já no dia em que cheguei à Quarta-Feira vi uma raposa, não sei se é a mesma mas a outra também parou assim por momentos a observar-me.
- Sabias que na cultura Chinesa as raposas tinham a fama de possuir uma grande força vital, pelo facto de viverem em buracos e estarem, portanto, perto das forças geradoras da terra. Também lhe é atribuída uma grande longevidade e os chineses afirmam ainda que é o único animal que saúda o nascer do sol, pois dobra as patas de trás, alonga e junta as patas da frente e prostra-se.
- Interessante, tanto como o facto de num espaço tão curto de tempo observar duas raposas com um comportamento tão estranho, normalmente limitam-se a fugir e não a parar para ver quem as observa, ou quem sabe para ela própria observar quem as vê.
- Então e a casa ainda é longe?
- Não, fica a um quilómetro mais coisa menos coisa.
Albus foi tirando fotografias ao longo de todo o percurso, fotografar a natureza era sem dúvida um dos seus passatempos favoritos e como tal cada caminhada por si empreendida era pretexto para fotografar.
Kailen preferia admirar o percurso, por mais do que uma vez se deteve para observar o comportamento de algumas aves ou então para analisar alguma espécie de plantas que desconhecia.
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