15/02/09

Capítulo 6 – A Vila do Castelo

Às seis da manhã os dois amigos já se encontravam acordados e com a barriga a dar horas, um dia inteiro a sandes e água não fora propriamente a alimentação mais correcta. Sem grandes demoras puseram-se a caminho, desceram rapidamente as Fráguas e enveredaram, por um outro percurso de regresso, não tão belo mas mais curto. Não passariam nem pela Retorta ou sequer pela casa da bruxa Betha, mas certamente estaria em casa bem antes da hora de almoço.
Com efeito, duas horas depois encontravam-se já na serra da Soalheira que ladeia a Quarta-Feira a Noroeste e de onde aproveitaram para tirar umas fotografias ao vale, já que, as condições de iluminação eram, segundo Albus, excelentes. Depois desceram a serra calmamente e no mesmo passo lento fizeram o restante caminho até à casa de Albus.
- Bem Kailen, estamos de volta, um bom banho e vamos comer?
- Parece-me bem, estou mesmo a precisar.
Enquanto Kailen tomava banho, Albus aproveitou para fazer mais umas anotações no seu velho caderno, depois cuidadosamente, guardou o Compêndio do Corpo e os versos das Fráguas junto ao Livro de Robur no baú que se mantinha, como sempre, guardado no cimo do seu guarda-fatos.
Depois do banho, um revigorante pequeno-almoço que os deixou prontos para o próximo passo da aventura.
Ao bater das dez no relógio da aldeia, Albus e Kailen saíram da aldeia num passo calmo e contemplativo, subiram o Barreirinho e seguiram a estrada de alcatrão que os levaria até à Ladeira Duque. Podiam observar à sua esquerda as belas serras graníticas da aldeia, povoadas de afloramentos e blocos graníticos, carvalhos, salgueiros, fetos e giestas. A sua direita estendidas para oeste as pastagens e os campos de cultivo da população local, lá bem ao fundo a Serra da Estrela em toda a sua grandeza tocando o céu no horizonte.
A Ladeira Duque estava próxima e com ela a decisão do caminho a seguir, a estrada de alcatrão ou então o velho caminho de terra utilizado por todos desde os tempos mais antigos. Claro que a decisão recaiu sobre o velho caminho dos Poiares, não só por ser de terra e pouco movimentado mas também pela beleza dos bosques ao seu redor maioritariamente de carvalhos, pinheiros e castanheiros.
Kailen e Albus iam conversando sobre as expectativas de cada um em relação ao que iriam encontrar na Vila do Castelo. Na perspectiva de Kailen seria extremamente complicado inspeccionar o altar já que como aldeia histórica a igreja da Vila do Castelo estava sempre povoada de turistas. Albus não queria ser forçado a contar ao pároco o que se estava a passar, tinha a certeza de que este não partilharia do seu entusiasmo.
A Vila do Castelo estava à vista, o pior era subir até lá acima ao interior das muralhas onde se encontrava situada a parte antiga da vila. Ao bater do meio-dia os dois amigos entraram pelas portas da muralha que dão para a praça principal. Atravessaram a praça num passo apressado, enveredaram pela Rua do Pelourinho e em apenas alguns minutos estavam junto ao Pelourinho com o castelo à sua esquerda e a igreja à direita.
Albus fotografou mais uma vez o castelo como tantas vezes antes tinha feito, depois calmamente dirigiram-se à igreja.
No seu interior um grupo de turistas admirava as belas obras de arte antiga e criticavam a inadequada remodelação modernista que a igreja sofrera no último ano.
- É uma tristeza! – dizia um, ao passar pelo quadrilátero em madeira que fora colocado sobre a porta lateral. – Realmente, não se fazia. Vandalizar esta bela igreja com uma arquitectura antiga de arcos e ogivas com quadriláteros e triângulos modernistas!
- É que não se percebe! – dizia outro que desapontado se preparou para abandonar o local seguido pelos restantes.
Kailen e Albus que entraram precisamente pela porta lateral sentaram-se num dos bancos da frente e deixaram-se ficar a ouvir as queixas dos turistas enquanto fixamente observavam o altar.
Assim que os turistas saíram Albus tomou a iniciativa e erguendo-se do banco dirigiu-se ao altar. Subiu os degraus de pedra, esticou o braço e com os dedos tocou o altar. O frio do granito penetrou a sua pele, percorreu-o com a mão e baixando-se colocou-se de joelhos com a desilusão a instalar-se na sua alma.
Kailen ao observar a reacção do amigo, caminhou até ele procurando com os olhos indesejados turistas ou o pároco, subiu as escadas e colocando-se ao lado de Albus perguntou:
- Que se passa?
- Não há nada aqui!
- O que queres dizer? – perguntou Kailen surpreso.
- Quero dizer que não há nada neste altar, verifica por ti mesmo, é um bloco de granito nada mais! Não há falhas, saliências ou mostras de poder ter sido aqui escondida alguma coisa! – disse Albus, mostrando já algum desespero na voz. - Tinha imaginado muita coisa mas nunca isto!
- Albus, repara este altar é novo! – disse Kailen reparando na talha do granito.
- Como assim! – exclamou Albus, observando uma vez mais o altar – Sim tens razão a pedra é demasiado lisa, foi cortada por máquinas e não feito à mão, mas mesmo assim isso só quer dizer que de uma forma ou de outra a nossa aventura terminou.
- Sim, – disse um Kailen desapontado – mas ao menos podemos pensar que a nossa única falha foi termos chegado tarde demais e que o texto da religião sempre existiu, apenas não fomos nós a encontrá-lo.
- E de que nos serve isso? De nada! Temos o livro de Robur, o compêndio do corpo, mas falhámos na última tarefa, não encontrámos o texto da religião.
- Estás a ser demasiado negativo Albus, podemos não ter o manuscrito com o texto da religião, mas nada nos impede de concretizar o sonho da Irmandade, podemos perfeitamente reavivar a Irmandade do Carvalho, mesmo sem o texto.
- De certa forma sim, mas no tocante à religião já não vai ser o que a Irmandade desejava mas sim o que nós achamos que deve ser.
- E qual é o problema! Somos ambos bastante liberais em relação a isso, ambos estudámos as vertentes das várias religiões, não percebo porque não podemos ser nós a definir os critérios da Irmandade no que diz respeito ao caminho espiritual de cada membro. Além do mais, em minha opinião, deve ser cada pessoa que queira fazer parte da Irmandade a escolher o seu caminho, não nós, nunca nós!
- Tens razão Kailen, apenas queria que tivesse sido diferente, que tivéssemos chegado aqui e encontrado uma saliência ou um compartimento secreto com o texto lá dentro.
-Também eu Albus, também eu!
Mesmo assim, Albus e Kailen continuaram a inspeccionar o altar, feito de um granito de tom azulado e constituído por duas pedras maciças, uma mais estreita e de arestas cortadas servindo de base à pedra principal, maior e geometricamente bem talhada.
De repente surgiu da sacristia o padre, que vendo o que os dois amigos estavam a fazer se dirigiu a eles num passo apressado.
- Que pensam que estão a fazer, não podem mexer aí!
- Ó! Desculpe senhor padre – apresou-se Albus a dizer – apenas quisemos ver o altar mais de perto.
- Pois, pois, mas não podem, por isso se fazem o favor desçam as escadas e cinjam-se ao resto da igreja.
- Tenha calma, homem! – exclamou Kailen, enquanto
Albus lhe lançava um olhar suplicante para que não dissesse nada que pudesse por o padre em sobressalto o qual Kailen ignorou – pensa que a igreja é sua ou quê?! Que eu saiba é um local público e como não estávamos a fazer nada de mal deixe-nos em paz.
- O quê! – exclamou o padre estupefacto – Tenha tento na língua, veja lá para quem é que está a falar.
Kailen ia mais uma vez responder impulsivamente mas Albus antecipara-se.
- Desculpe o meu amigo senhor padre, nós vamos já embora, mas antes e se não fosse muito incómodo gostaria de lhe fazer uma pergunta.
- Então diga. – disse o padre aborrecido.
- Nós reparamos que este altar é novo, por acaso não nos sabe dizer o que foi feito ao antigo?
- Sim sei, o antigo altar é agora a mesa que está lá fora junto à porta pequena.
- Ai sim! – exclamou Albus com uma réstia de esperança a renascer dentro de si – Não me saberá dizer se foi encontrado algo no altar antigo, quando foi removido daqui?
- Encontrado o quê?! Não estou a perceber a sua pergunta!
- Ora o quê, – disse Kailen que tinha estado a fazer um esforço para ficar calado – um manuscrito ou assim!
Ao ouvir a declaração de Kailen o padre esboçou um sorriso de escárnio e sem mais começou a dirigir-se novamente para a sacristia.
- Por favor padre, responda-nos. – disse um Albus suplicante.
Por momentos pareceu que o padre continuaria a sua caminhada decidida para a sacristia, mas, detendo-se por breves instantes disse:
- O altar foi mudado vai para trinta anos, mais ao menos na altura em que fui destacado para esta paróquia. Vi o altar ser mudado, inspeccionei pessoalmente as obras e a minha resposta é não. Não foi encontrado qualquer manuscrito.
Sem mais o padre desapareceu pela porta que dava acesso à sacristia, Albus e Kailen dirigiram-se rapidamente para a saída, poderia ainda o manuscrito estar no antigo altar? Não teriam dado com o manuscrito ao mudar o altar de sítio? Seria possível que mesmo assim o manuscrito ainda estivesse ali ao alcance das suas mão?
Saíram da igreja pela porta pequena que tinha do seu lado esquerdo o antigo altar, começaram rapidamente a observá-lo na tentativa de achar o que não tinham achado no outro, procuraram por saliências, vestígios de que a pedra pudesse ser oca, buracos feitos na rocha, mas nada! Este altar era basicamente igual ao que se encontrava no interior da igreja, simples e sem quaisquer indícios de poder esconder o que quer que fosse no seu interior. Mais uma vez a desilusão instalou-se no coração dos dois amigos que desapontados abandonaram o local e se dirigiram para o castelo.
O castelo era antigo, tão antigo como a vila, construído num afloramento granítico, encontravam-se em perfeita simbiose, escadas de pedra facultavam o acesso á porta principal, no interior a antiga cisterna e a torre de menagem, tudo o resto, que teria sido de madeira, tinha já sido destruído pelas pessoas ou então pelo tempo.
A torre de menagem fora pensada de forma a ser de difícil acesso, assim, nos dias de hoje para se poder aceder a ela era necessário escalar um pouco através do maciço até à porta de entrada, uma vez lá dentro também já não existiam quaisquer escadas para se chegar ao seu cimo, apenas sulcos na parede onde antes as escadas de madeira se encontraram seguras, Albus e Kailen aproveitaram os sulcos para subirem até ao alto da torre de menagem e de lá, já sentados, puderam observar a vila e as serras ao redor.
Ambos se viraram para Nordeste, era nessa direcção que podiam ver a serra de São Cornélio onde esta aventura tinha começado.
- Nunca pensei terminar assim esta aventura. – disse Albus desolado.
- Nem eu! Estávamos a ir tão bem, encontramos o livro de Robur por um acaso do destino, depois o compêndio pela correcta e hábil utilização do livro e por fim a pista que nos trouxe até aqui. Penso que ninguém teria feito melhor que nós.
- Concordo, mas de certa forma é de entristecer terminar desta maneira algo que estava a desenrolar-se tão bem.
- Será que nos enganámos?
- Como assim? Enganar em quê?
- Na vila! Pode não ser esta, e se for a Vila do Cinco Quinas?
- Era bom que fosse. E por mais difícil que se tornasse encontrar a igreja certa entra tantas que lá existem, enquanto durasse a busca sempre haveria uma réstia de esperança nos nossos corações. Não Kailen, a Vila é esta, esta é a vila granítica do poema, nós é que chegámos com anos quem sabe décadas de atraso.
- É! Por mais que eu não queira a vila é esta. Seja! Não podemos fazer mais nada a não ser pensar na reactivação da Irmandade do Carvalho, difundir as ideias do livro e do compêndio e congregar membros.
- Sim, ao menos isso, podemos fazer.
Foi nesse instante, enquanto Kailen e Albus, discutiam os primeiros passos a dar na congregação de membros, que pequeno grupo de turistas entrou na torre de menagem queixando-se da escalada que acabavam de fazer.
- Já vai sendo tempo de colocarem aqui umas escadas! – queixou-se um.
- É que não dá jeito nenhum subir assim. - disse outro.
- Esta vila está cada vez pior, não chegava já os fracos acessos do castelo, ainda pioraram tudo com a restauração da igreja! – disse um outro.
- Qual restauração?! Aquilo foi uma remodelação criminosa, restaurar seria recuperar o que estava velho e em mau estado. O que fizeram foi inventar um novo interior para a igreja o que a torna desequilibrada e fora do contexto da vila! – disse o primeiro.
- Realmente, dá mais gozo ir visitar a antiga igreja românica, sem telhado, esquecida e abandonada no exterior das muralhas do que a igreja matriz depois da remodelação! – disse um dos outros dois.
Era isso! Albus e Kailen, que tinham parado de conversar assim que os turistas se acercaram da torre e se deixaram ficar lá do alto a observa-los, tinham acabado de entender tudo!
Como podiam ter sido tão esquecidos, existia mais uma igreja na Vila do Castelo, a velha igreja românica, por sinal a mais antiga das igrejas de toda a região circundante.
Tinham pura e simplesmente negligenciado esse facto, na ânsia de achar o texto da religião esqueceram-se do local mais lógico para este estar escondido, a velha igreja esquecida e abandonada, mas mística e cheia de simbolismo.
Desceram rapidamente do cimo da torre, saltando os últimos metros, passaram a correr pelos turistas e saíram do castelo em direcção à porta oeste da muralha, onde, cortando à esquerda enveredaram por um antigo caminho que os levou à igreja.
Ao chegarem entraram pela porta principal, em arco, o interior era todo em pedra, com algumas esculturas de anjos e motivos florais gravados no granito. Ao fundo o altar para onde se dirigiram a correr, Kailen parou na parte frontal e Albus rolou sobre a pedra horizontal para mais rápido chegar ao outro lado, onde se ajoelhou para inspeccionar a pedra.
Por entre motivos florais, lá estava disfarçado o rectângulo de granito que certamente esconderia o texto tão cobiçado.
Albus retirou a navalha da mochila e picou o barro branco que segurava o pequeno rectângulo de granito, Kailen observava-o impaciente. Por fim, o barro cedeu nas mãos de Albus que com cuidado removeu o rectângulo. Com os olhos a cintilar de felicidade observou o receptáculo que certamente continha o texto da religião.

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