15/02/09

Capítulo 5 – As Fráguas


Depois de mais duas ou três horas de caminhada chegaram finalmente ao sopé das Fráguas e a uma penosa subida de mais meia hora até ao seu topo. Desta feita Kailen e Albus subiram num ritmo bem mais apressado já que a proximidade da terceira tarefa e a curiosidade em saber do que se tratava falavam bem mais alto.
Finalmente o castro da povoação pré-romana. Apenas restavam uma ou duas fundações de casas e o vestígio do que teria sido uma rua, tudo o resto não passava de um grande amontoado de pedras. Ao fundo a clareira e nela a pedra gravada, sob o chão da qual se encontrava a pista da terceira tarefa.
- Sabes Albus, não me apetece nada rebentar os dedos a cavar essa terra seca e dura.
- Pois! Deixa ver….
Albus procurou com os olhos uma giesta seca, localizando-a dirigiu-se a ela e cortou um ramo do qual fez um utensílio para o ajudar a cavar, Kailen imitara-o e ajoelhando-se ao lado do amigo começou a cavar freneticamente em busca da pista. Vinte minutos se passaram até que por fim Kailen com a ponta do pau gasta de tanto cavar encontrou o procurado, uma caixa de metal ferrugenta contendo no seu interior um outro receptáculo feito com cana e tapado com cortiça. Albus pegou nele, abriu-o e retirou do seu interior um pergaminho meio roído pela humidade que dizia:

“Que belas são as Fráguas,
De fazer esquecer mágoas.
Quem olha para o chão,
Vê granito até mais não!

Mas neste mundo isolado,
Pelo granito tão bem delimitado,
Há vilas de castelos,
Tão místicos como belos.

E é num desses locais,
Religioso por demais,
Que se encontra o que procura,
Teu coração de alvura.

Pois puro e humilde deve ser,
Todo aquele que quiser ter,
Os textos que explicarão,
O porquê desta comunhão.

De pedra é o lugar sagrado,
Onde a cruz e o altar rasgado,
Te mostram o lugar
Onde deves procurar.

E já que procuras deves saber,
Que a religião ou o querer,
Advêm todas sem excepção
Do mais profundo de cada coração!”
Abiel


Releram o pergaminho durante um longo tempo tentando entender a que vila se referia Abiel, o padre. Seria à Vila do Cinco Quinas?! Ou a outra que não esta? E o local seria uma Igreja, seria um castelo?
Kailen ergueu-se e caminhou pelo que restava do antigo castro. Albus, guardou cuidadosamente o pergaminho junto do Compêndio do Corpo, fechou a mochila e fixou os olhos no céu onde as primeiras estrelas apareciam e deixou-se ficar, pensando nos versos que acabara de ler.
Era tarde, tarde de mais para regressar a casa pois em breve seria noite, sentou-se encostado à pedra gravada, olhou ao seu redor e imaginou como os antigos povos se serviriam da clareira, que cerimónias antigas e misteriosas, que orações ou preces e, quem sabe, que feitiços e conjurações teriam sido ali praticados.
Kailen, com passos largos e apressados regressava à clareira, já próximo dirigiu-se ao amigo:
- Já é tarde Albus, se queremos regressar temos que nos apressar.
- É tarde demais para voltar, demoraríamos horas e não tarda, anoitece.
- Que sugeres? Pensas telefonar a alguém para nos vir buscar?
- Não. Que tal se nos ficássemos por aqui? Dormindo sob a abobada celeste e tendo o chão como cama.
- Muito bonito, mas o chão é desconfortável e à noite arrefece!
- Por vezes também o amor trás algum desconforto, mas penso que uma noite ao relento nos trará mais coisas boas que ruins. Mas, se quiseres telefono ao meu irmão e ele vem buscar-nos.
- ! Penso que a bruxa Betha também terá dormido inúmeras vezes assim, do Robur nem vale a pena falar, como era pastor deve ter dormido com o seu rebanho, centenas de vezes ao relento. Como novos percursores da Irmandade temos o dever de fazer o mesmo e de aproveitar todas as bênçãos que a noite nos trouxer.
- Vamos então arranjar onde dormir e depois, como ainda sobram umas sandes do almoço, jantamos.
Escolheram a clareira para dormir, o local não era o mais abrigado, mas em contrapartida era no entendimento dos dois o mais místico. Cortaram giestas e dispuseram-nas no chão na forma de um colchão improvisado onde finalmente se sentaram para jantar. Entre sandes de pão ressequido e com água por bebida a noite foi caindo nas Fráguas.
Acabaram de jantar, arrumaram tudo, colocaram o lixo num saco que ataram à mochila e deitaram-se para observar o céu repleto de estrelas.
- Albus, é melhor telefonares para casa a avisar que hoje dormes fora. Eu não tenho problemas já que os meus pais pensam que estou em tua casa mas os teus são capaz de ficar preocupados.
- Tens razão! – e pegando no telemóvel Albus telefonou para o irmão, a informá-lo de que dormiria fora e pedindo-lhe que avisasse em casa.
- O céu está magnífico não achas Kailen?
- Sim. Sabes, ainda bem que é lua cheia, assim ainda se vê alguma coisa. Já imaginaste se fosse lua nova, não conseguiríamos ver nem a ponta do nariz!
- Tivemos muita sorte, a vista daqui é realmente bela, este céu estrelado, as luzes das povoações cintilando ao longe, silhuetas de bosques silenciosos.
É incrível que quando se está em casa, fechado entre quatro paredes, assistindo a programas de televisão maioritariamente sem qualquer interesse, nem imaginamos como é belo estar assim, ao relento tendo a noite como cobertor e a lua e as estrelas por companheiras.
Tenho pena Kailen, por mim que raramente saio assim ao encontro da noite e por todos aqueles que não sabem como é gratificante estar na noite, sentindo a natureza, sentindo-nos a nós mesmos.
- Realmente, se estivesse em casa e tivesse pensado em sair daquele conforto para vir dormir para aqui, penso que a ideia me teria provocado até um arrepio, mas estando onde estou, deitado nestas giestas olhando o céu com todo o desconforto físico que isso possa acarretar, mesmo assim, sinto-me feliz, em paz e com uma alma enorme. Este fugir da civilização é também a meu ver uma aproximação a Deus e a tudo o que é mais puro em nós.
- Concordo plenamente. Quem sabe se o Robur a Betha e o Abiel não passaram juntos noites como esta, deliberadamente saindo de um mundo para entrar num outro mais calmo, natural e belo.
- Por falar no Abiel, onde te parece que se encontram escondidos os textos dele?
- O texto da religião? Não sei, mas a vila mais óbvia seria a Vila do Cinco Quinas já que é a única vila do concelho. Mas, se quisermos ser precisos na altura em que estes textos foram escritos existia uma outra vila.
- Pois é! A vila do Castelo, que só perdeu o título de vila à coisa de um século ou assim.
- Exactamente, mas existe também um outro ponto que me leva a inclinar-me para a Vila do Castelo, a referência nas primeiras quadras ao granito, das duas vilas só esta é granítica.
- Muito bem pensado! Então o texto da religião estará escondido na igreja da Vila do Castelo, perto do altar ou quem sabe até dentro dele. A referência à cruz e ao altar rasgado não deixam dúvidas!
- Não poderia estar mais de acordo. Amanhã iremos à Vila do Castelo averiguar.
- Pois mas temos um problema que me parece intransponível.
- Que problema Kailen?
- Não me parece que nos deixem entrar pela igreja a dentro, ir direitos ao altar de maça de partir pedra em punho para ver se tem alguma coisa dentro!
- Hi! Hi! Hi! Tinha a sua piada essa, era ver o pároco a gritar blasfémia e a correr em direcção à sacristia para telefonar à GNR para nos levarem para o posto!
Visualizando a cena Kailen e Albus riram até lhes doer a barriga e as costas.
- Ai! Estamos para aqui a rir Albus, mas o que é certo é que a nossa aventura pode ter chegado ao fim.
- Pois é, a não ser que falemos com o padre.
- É…! Ó senhor padre deixa-nos partir o altar para ver o que está lá dentro?
O comentário de Kailen fez novamente os dois rirem até lhes virem as lágrimas aos olhos.
- Isto está mau, não estou a ver forma de contornar a situação!
- Também não, pode ser que o altar contenha uma abertura ou assim, ou que o texto não esteja no altar e sim no chão perto dele!
- Pois, pode ser que sim! Amanhã veremos.
Kailen e Albus tinham hábitos distintos ao deitar, Kailen aproveitava para antes de adormecer exercitar algumas técnicas de meditação ou então de projecção astral. Albus preferia rezar. Uma prece que sua mãe lhe ensinara em criança continuava a marcar o início da sua oração:
“Nesta cama me deitei, para dormir descansado, se a morte vier e não me deixar falar, arrumo-me ao cravo, do cravo abraço-me à cruz, entrego a minha alma ao santo nome de Jesus, Jesus me valha valha-me Jesus, valha-me a cruz do céu que ela não caia sobre nós, Jesus Cristo morreu nela, que ele nos valha e clame por nós.”
Depois costumava rezar o Pai Nosso numa versão por si modificada em que retirara o “que estais no céu” já que a seu ver Deus está em toda a parte e não apenas no céu, e modificara também o “livrai-nos do mal” para ajudai-nos a enfrentar o mal pois no seu entender só enfrentando as situações podemos ultrapassá-las e se pedimos para nos livrar das situações malignas nunca as ultrapassaremos nem evoluiremos.
A Avé Maria sempre fora uma das suas orações de eleição à Deusa ou princípio feminino Universal ou outro nome que se queira dar-lhe, como tal rezava-a por três vezes, terminando e começando com, “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós”. Para si o feminino do Universo tinha a forma de um arquétipo de mulher, com o nome de Maria, o masculino esse de certa forma era um pouco mais indefinido, pois, por mais estranho que possa parecer as imagens que o seu cérebro criava quando pensava numa representação física para Deus eram figuras do Deus Cornífero da Wicca. Certamente estas representações derivavam da educação que dera a si mesmo no respeitante à religião.
Como a leitura sempre fora um hábito através dela e da prática do que lia, tinha, na sua óptica, atingido um equilíbrio no tocante à forma de viver e sentir o divino. Esta auto-instrução ao longo de anos fizera-o concluir que no Universo existem dois princípios criadores, um feminino e um masculino, que se completam mutuamente, são energias, mutáveis quando necessário e com possibilidades infinitas, geradoras ou destruidoras de mais energia, matéria ou vida. Como energias que são podem assumir qualquer forma e sendo assim para si, assumiriam sempre a forma que a sua alma mais necessitasse, não era importante se era a de uma mulher ou a de um Deus com chifres ou então vestido de branco com cabelo e barba grisalhos, o importante era sentir o contacto com o divino, entregar-se a essas energias durante a oração para que estas pudessem cuidar da sua alma.
Quando Albus terminou de rezar, Kailen encontrava-se ao que parecia a dormir, Albus não o perturbou pois conhecia o amigo e sabia que podia naquele instante estar a meio de uma projecção astral, com a alma por momentos fora do seu corpo físico. Kailen costumava dizer que ao terminar uma projecção se sentia
sempre mais leve, ao que Albus respondia dizendo que ao rezar ou contemplar também terminava por se sentir assim.
Albus adormeceu embalado pelos sons da noite, grilos, uma coruja e até o coaxar de rãs tornavam a noite menos silenciosa do que ao princípio imaginara. Em sua oração tinha pedido que a noite fosse tranquila e que uma protecção divina os resguardasse dos seus perigos. Ao adormecer -lo na certeza de que nada de mal lhes aconteceria.

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