15/02/09

Capítulo 2 – O achado


- Kailen. – chamou Albus espantado com o desaparecimento súbito do amigo.
- Ei! Kailen. Onde estas? KAILEN!
Kailen não respondeu e Albus começou a ficar preocupado. Pela sua mente passou a ideia de que Kailen poderia ter tropeçado ou escorregado em alguma pedra mais traiçoeira, caído e até quem sabe ter-se magoado seriamente. Foi com esse pensamento que sem mais demora começou a subir, refazendo o trajecto mas no sentido inverso. Subia o mais rápido que as suas pernas lhe permitiam, saltando e escalando serra acima.
- Kailen – voltou a chamar.
- Aqui em baixo. Estou aqui em baixo!
Aliviado por finalmente obter resposta aos seus chamados, dirigiu-se ao local de onde lhe pareceu ter vindo a voz de Kailen.
- Ei! Estou aqui em baixo, numa espécie de buraco.
Seguindo o som, finalmente deu com o local. Próximo de um carvalho solitário, o único em vários metros, um buraco de aproximadamente meio metro de diâmetro encontrava-se aberto no chão, ao olhar lá para dentro espantou-se ao verificar que tinha aproximadamente 2 metros de profundidade e que Kailen jazia lá dentro com uma cara de espanto e um sorriso nos lábios.
- Acho que encontrei uma coisa interessante.
- O quê?
- Ainda não sei! Desce e veremos.
Albus, enfiando-se pelo buraco saltou para junto de Kailen. Olhou ao seu redor, verificando que o espaço possuía apenas três paredes formadas pelos blocos de granito responsáveis pelo local onde se encontravam, entre dois desses blocos uma abertura prolongava-se mais para dentro das rochas e era aí que Kailen, agachado, tentava avidamente chegar a algo com a mão.
- Está aqui qualquer coisa, parece um vaso de barro ou assim.
- Um vaso de barro?! Deixa-me ver!
- Espera estou quase a conseguir agarrá-lo, está quase…consegui!
- É realmente um vaso. – disse Albus pegando espantado no achado de Kailen, um vaso de barro com uma boca estranhamente larga, tapada com o que lhe pareceu ser cortiça e betume.
- Observa, parece estar selado, o que será que contem?
- Ouro não é, pelo menos não tem peso para isso. – observou Albus abanando o vaso junto ao ouvido.
- Vá! Abre para vermos o que está lá dentro.
- Não! O achado é teu, és tu quem deve abrir.
- Dá cá!
Pegando no vaso Kailen puxou pela tampa que sonoramente cedeu e caiu ao chão. Metendo a mão dentro do vaso tirou lá de dentro um embrulho de tecido preto, desembrulhou-o e espantou-se com o que encontrou…um livro!
- Um livro?! – interrogou-se Albus surpreendido.
Kailen pousou o vaso e o tecido que tinham contido e protegido o livro que agora inspeccionava com as duas mãos. Este tinha capas feitas a partir de casca de carvalho e as folhas do seu interior feitas de pergaminho. Um fio ao longo da lombada do livro unia as folhas e a capa.
- Estranho não é? – perguntou Kailen.
- Parece ser antigo. Anda, vamos sair daqui e examina-lo melhor lá fora, onde há mais luz.
Apoiando os pés nas paredes da pequena gruta Albus voltou para o exterior, Kailen colocou o tecido e o livro no vaso e passou-o a Albus, este pousou-o e retirando o livro lá de dentro começou a examiná-lo enquanto Kailen subia.
- Quem enterraria um livro numa serra? Ainda para mais num local como este, nem sei como deste com ele!
- Ia mesmo atrás de ti, tentando chegar mais rápido que tu ao Monte da Lua e ao saltar para aquela pedra que estás a ver lá em baixo, no buraco, o chão ruiu sob os meus pés. Ainda bem que consegui saltar a tempo para uma pedra segura, pois caso contrário poderia ter-me magoado se caísse juntamente com a pedra que tapava o buraco. Então, parei para ver o que tinha acontecido e deparei-me com esta pequena gruta, desci para a inspeccionar e foi então que ao olhar pela reentrância entre duas das paredes de rocha me deparei com o vaso. O resto já tu sabes.
- Sim, mas um livro num vaso no meio da serra?!
… Bem, vamos ver o livro e talvez este contenha a explicação.
Kailen pegou no livro e sentou-se encostado ao carvalho que se erguia solitário e imponente na serra granítica, Albus colocou-se a seu lado e Kailen abriu o livro na primeira folha onde, estava escrito:

“Escrevo para não esquecer e para não ser esquecido, talvez um dia estas palavras que escrevo passem para mãos mais importantes que as minhas, ou por outro lado, talvez fiquem ocultas neste chão para sempre. Não importa, fiz tudo o que tinha a fazer nesta vida e nada mais me resta que esperar por outra. Escrever este livro é quem sabe o meu último acto, a minha última acção verdadeiramente importante, nestas serras que são a minha casa e que tanto amo. Pois que assim seja e assim se faça!”
Robur
Emoções e perguntas invadiram Albus quando terminou de ler a primeira página, afagou-a com os dedos e sentiu a folha rugosa e velha, levantou-se, observou aquelas serras como se nunca antes o tivesse feito e pensou que alguém antes de si tinha amado tanto aquele local como ele agora amava, e que, por um desígnio misterioso um livro escrito por esse alguém tinha chegado até si encontrado por ninguém menos que o seu melhor amigo. Virou-se e fitando Kailen perguntou:
- Quem terá sido este Robur?
- Sei lá! – exclamou Kailen – Talvez o livro contenha a resposta nas páginas seguintes.
- Então continuemos a ler. Passa para a próxima página.
Kailen e Albus leram sofregamente cada página, enquanto o tempo foi passando por eles sem se aperceberem. Quando por fim terminaram eram já três da tarde e o sol erguia-se acima das suas cabeças mais quente que nunca, trazendo consigo um vento abafado e seco.
- Este livro é intrigante! – disse Albus a Kailen que acenando afirmativamente perguntou:
- E tem umas ideias muito boas, não achas?
- Sim. Sabes, penso que o que aí está se pode perfeitamente aplicar aos dias de hoje.
- Também me parece. O planeta gira, o tempo passa, mudam as roupas e os hábitos mas infelizmente fica o modo de agir e pensar.
- É…Infelizmente. – concordou Albus ficando por momentos de olhar apreensivo contemplando a serra – É uma pena que esse tal Robur nunca tenha conseguido levar a sua ideia avante, imagina como seria o nosso país hoje, ou até quem sabe o mundo.
- Parece-te possível, que as ideias simples de um simples pastor possam mudar a forma de agir e pensar de alguém?
Albus fitou Kailen por momentos, o amigo estava agora de pé com as costas apoiadas ao velho carvalho solitário, afagando lentamente a capa do livro.
- Claro Kailen, porque não?! Se seguisses o que é dito no livro, não te parece que também tu te tornarias diferente?
- Acho que sim…mas pensando bem, nem me parece que a nossa forma de ver as coisas seja muito diferente da deste tal Robur.
- Quem sabe não foi por isso que fomos nós a encontrar o livro e não outro qualquer!
- E agora o que fazemos com ele? – perguntou Kailen enquanto folheava novamente o velho livro de Robur.
- Estava a pensar…que te parece se…já que temos tanto tempo livre seguisse-mos o que aí está, folha por folha, etapa por etapa?
- É uma ideia, mas não te esqueças que só tu Albus estás aqui, nestas serras a maior parte do tempo, eu vivo na Miuzela.
- Pois! Isso complica um pouco as coisas.
Ficaram os dois em silêncio durante algum tempo, Albus folheando o livro, e Kailen elevando-se repetidamente do chão usando uma pernada do carvalho onde se tinha pendurado e para onde acabou por subir pendurando-se utilizando as pernas ficando assim de cabeça para baixo. Albus ergueu ligeiramente o olhar para observar Kailen e começou a rir. Kailen olhou o relógio e de imediato saltou para o chão.
- Já são estas horas?! – disse surpreso – a minha mãe deve estar fula comigo, disse-lhe que estaria de volta às duas e olha para isto, três e meia! Tenho de ir.
- E o livro? – questionou Albus.
- Bem, fica tu com ele, analisa-o com calma e depois diz algo. – Kailen dizia estas palavras enquanto começava já a subir fazendo o percurso que o levaria de volta ao Dirão da Rua.
- Depois telefono – disse Albus, mas ficou com a impressão que Kailen já não o ouvira. Fechou o livro, voltou a embrulhá-lo no tecido e colocou-o com cuidado na mochila. Pegou no vaso de barro com uma mão enquanto com a outra colheu uma pequena rama de carvalho colocando-a no interior do vaso. Saltou novamente para dentro do buraco onde o achado tinha sido feito e disse em voz alta:
- Não sei se o que se encontra escrito no livro é ou não verdade, nem sei se as pessoas lá mencionadas realmente existem ou existiram, mas uma coisa quero dizer…farei tudo o que estiver ao meu alcance para descobrir; e se o universo me der sinais de que o caminho que pretendo seguir é o correcto então… – Albus observou mais uma vez o buraco virando depois a olhar para o céu que se encontrava sem nuvem fixando os olhos no azul – …refarei juntamente com o Kailen a Irmandade do Carvalho.
*
Passavam já das vinte e duas horas quando nessa noite, finalmente Albus se sentou para analisar cuidadosamente o livro, retirou da estante o seu velho caderno de apontamentos colocando-o sobre a mesa, abriu o livro de Robur na primeira página e começou a reler.
As horas foram passando como se de minutos se tratassem, Albus foi lendo e apontando aquilo que lhe pareciam ser os pontos mais importantes do livro, assim, Albus acabou por dividir o livro em duas partes – ideias ou princípios básicos, e tarefas.
O livro era acima de tudo, um projecto de vida. Robur fora pastor, mas não foi por isso que não se instruíra e fora com base nessa instrução, adquirida por vivências, transmissão oral, ou pela leitura e escrita, que estabeleceu como objectivo primeiro na sua vida formar uma irmandade, que teria na sua óptica três princípios basilares:
1º - O respeito e o amor por todas as coisas que existem, em especial pela natureza que deve ser cuidada e preservada;
2º - A liberdade de escolha quanto ao caminho espiritual a seguir, que acima de tudo deve ser seguido com afinco;
3º - O corpo como templo da alma, que como tal tem de ser trabalhado e estimado.
Ora estabelecer os princípios foi para Robur o mais fácil, o problema foi colocar a Irmandade de pé, no seu tempo não existia um meio de comunicação fácil, rápido e fiável, assim foi difícil para Robur cativar outros para o seu projecto.
Sendo do Dirão da Rua foi para a população local que primeiramente virou as suas atenções, facilmente percebendo que ninguém estava interessado no que tinha para dizer, todos se encontravam demasiado ocupados para ligar às palavras de um excêntrico pastor, que vivia sozinho numa casa isolada no cimo de um cabeço. Assim, procurou partilhar o que pensava e sentia com pessoas das aldeias vizinhas conseguindo apenas, para além de si próprio, mais dois membros para a sua Irmandade, o pároco da Vila do Castelo e uma bruxa solitária que habitava um velho casebre a meio caminho entre a Aldeia da Quinta do Clérigo e um pequeno aglomerado de casas chamado de Retorta.
Os três constituíram durante todo o tempo em que viveram um pequeno grupo unido que designaram de Irmandade do Carvalho. A Irmandade não tinha Grão-Mestre, ou presidente e cada um era igual ao seu próximo, o pastor, a bruxa e o padre. O pastor era o principal percursor do primeiro princípio que postulava o amor ao Universo e o cuidar do Mundo Natural. O padre defendia acima de tudo, mesmo do seu caminho espiritual, a liberdade de escolha de cada um no tocante ao percurso espiritual a seguir. Por fim, a bruxa era a grande protectora do conceito “corpo como templo do espírito”, que deve ser trabalhado e estimado.
Não foram bem sucedidos nos seus intentos, a Irmandade não movia bens ou dinheiro e algo tão estóico não interessava a ninguém, por fim, num dos seus últimos encontros, os três concordaram que as suas ideias e formas de pensar não se adequavam à época em que viviam e sendo assim ou eram loucos ou então visionários e foi com a convicção nesta última opção que decidiram, num derradeiro acto em prol da continuidade da Irmandade, que o pároco escreveria um texto sobre o aparecimento das religiões no mundo e sobre os caminhos espirituais, a bruxa um compêndio de plantas medicinais e exercícios para o corpo e que Robur, o pastor, escreveria um livro contando a história da Irmandade do Carvalho, contendo nele não só um texto de referências aos três princípios básicos como também um conjunto de tarefas a serem realizadas por quem tivesse o livro em sua posse de forma a poder considerar-se um membro da Irmandade.
Estas tarefas levariam o primeiro que as realizasse aos textos do padre e da bruxa.
“Quem possuir o livro, o texto da religião e o compêndio do corpo é digno de pertencer à Irmandade do Carvalho.” – era com esta frase que Robur terminava o seu livro.

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